quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

As três gerações

Esses meus desejos estranhos...

Acordava pelas manhãs de domingo, algumas manhãs de sábado, ainda cansado do dia anterior inebriado de tanto estudo, tempo bom da escola, e ouvia cada uma das canções que marcaram minha infância,as canções que hoje canto a plenos pulmões e me julgam de espírito velho, a porta de meu quarto se abria e a imagem que já se tornara característica dos fins de semana, meu pai sentado à velha cadeira de madeira da cozinha, prostrado em frente ao som, com seus mil CDs, um verdadeiro DJ da MPB, da bossa nova, e de lá saíam também alguns clássicos internacionais, blues, raridades, rocks pesados do estilo de Iron Maiden e as suas músicas mais românticas e interessantes...

Se sentia sono? Se ainda queria continuar na cama? Se gostaria do silêncio total na penumbra do meu quarto? Com certeza...

Mas sentava no sofá e ficava cantarolando todas as músicas que já sabia de cor, inalando a fumaça do cigarro ruim que meu pai soltava após cada canção tocada, após cada troca rápida de CDs, quiçá até mesmo alguns discos do tempo de vovô menino... e por falar em avô, trocaria com orgulho, as três gerações sentadas em círculo, e outras fumaças, e mais histórias, e a mistura de músicas, ainda que hoje em dia eu possa ter a vontade de escutar algumas coisas que meu avô abominasse, ou talvez puxasse um pouco mais do meu saco e dissesse que cada tem seu gosto, e ouviria com gosto as mentiras, as verdades, os casos e acasos que acometeram tantas décadas de vida, e gritaria um pouco também, por quê não? Tenho minhas aventuras, todas tão interessantes quanto às de meu pai, quanto às de meu avô, ainda não matei porcos, cabritos, ainda não perdi todo meu dinheiro em jogos e fugi pra não morrer, ainda não desci compridas ruas dando fim aos meus relacionamentos passageiros todos para amar somente uma mulher pro resto da vida, ainda não vi Flamengo campeão mundial, mas sei de alguns fatos meus e só meus que dariam orgulho aos meus progenitores, que os fariam corar, que os fariam sentir gosto de terem me dado a vida, tenho minhas canções, minhas palavras, minhas vitórias, meus livros, meus amores, minhas cartas por baixo da manga que jogaria pra ganhar de Seu Oscar, que já joguei pra ganhar de Seu Liu...

E quando a criatura supera o criador, aproveito para me repetir, é conseqüência da criação.

E hoje sou eu quem se coloca de frente ao som, mais novo, mais limpo, mais intenso, mais gritante, para ouvir, sozinho, todas as músicas que marcaram e ainda marcam essa passagem que dou pela vida; não sei se perco meu tempo parado analisando as notas de uma bela música, não sei se perco muito ou pouco da minha saúde vivendo de passado e inalando a fumaça que antes não me pertencera, mas o meu sofá é grande... comporta três pessoas, e se meu pai estivesse no quarto dormindo, acordaria satisfeito, abrindo a porta, ao ouvir Raimundo Fagner cantarolando, e se Deus permitisse, abririam também as portas do céu, e desceria meu avô, as três gerações sentadas, lado a lado, não mais um círculo infinito onde se perderiam sem saber o ponto exato, e sim uma reta, com começo, meio e fim, e a grande possibilidade de que essa reta se prolongue, se estique, seja a maneira mais certa de que o fim está longe...

4 comentários:

Fernanda disse...

Tive saudades de um tempo que talvez não tivesse o sabor que senti agora.
Tudo era tão tenso, tinha uma proporção maior.
Lendo foi tudo transformado em boas lembranças, pude sorrir com as coisas meu fizeram chorar.
Valeu os minutos que parei para ler.

Rosane disse...

Ahhh lembrei dos "LPs" do meu pai na vitrola de casa... Roberto Carlos fez parte da minha vida!

Eli Bernardo disse...

O entusiasmo do encantamento produzido por um texto feito pela criatura, deixa o criador cada vez com mais certeza do dever comprido. E é sempre com muito orgulho que eu leio a magia da sua arte. E a estrada da vida, de nossas vidas, nunca terá fim, pois os Bernardos se perpetuarão quando vc passar de criatura a criador. Perfeito seu texto e obrigado por esses momentos de pura emoção.

beth freires disse...

com certeza certas coisas nas nossas vidas,saõ marcantes mais a historia de vida de meus pais é pra emocinar a todos essa me fez refletir e naõ sentir vergonha de ser uma pessoa sensível....