quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A dose certa

"Tomou um susto que lhe abriu a boca..."
Deitou sereno na ausência da paz de seus deuses, sem afronta ou desafio ao divino dos céus; silenciou sua cabeça no travesseiro como se todas as vidas fossem somente dele; calou-se perante o mundo quando a dor tomava conta de seu corpo e fez do grito apertado no peito o maior desafio já enfrentado. O que sentia era paixão.
Mas esse homem não nasceu parar sofrer.
Teve todas as oportunidades criadas por si próprio, galgou os maiores patamares entre os que lhe cercavam e, talvez, a inveja alheia tenha sido uma das razões pra que tenha chegado a esse ponto. Não se reconhecia mais. O noturno escuro do seu quarto não cabia mais em sua mente, fez parecer fácil o que vinha sentindo mas por dentro sabia que a dor lhe rompia as entranhas como a mais afiada lâmina do arrependimento. Aquele sangue que dele escorria era invisível aos olhos normais dos mortais que estavam à sua volta, mas nele, fazia uma cachoeira do mais vermelho líquido, como fosse um desses milagres onde o Messias transforma água em vinho... viu suas lágrimas tornarem-se sangue.
Não dormiu.
E nem poderia.
Quem há de dormir, quem há de descansar os pensamentos, quando o que mais lhe aturdia está vivo em seu coração, quem há de conseguir espairecer o cansaço do dia quando a imagem do amor lhe dói por dentro, que Platão, que romances, que músicas em lentos ritmos, que noites chuvosas?, tudo em que se possa entristecer estava ali, estava pregado em seus olhos como se quisessem forçá-lo a derramar outras lágrimas vis, outras dores diferentes, outros remorsos por ser quem era...
"Mas a vida é real de viés."
Ainda na madrugada fria, levantou-se e tornou a andar. Disse o homem que vocês devem conhecer: Levanta-te e anda. Não o fez. A fim de contrariar e assimilar seu exagero, não só andou como correu.
Correu pelo mundo como sempre fizera nos tempos de garoto, aqueles que não são assim tão idos, são bem próximos, tempos em que com um braço esticado ainda podem ser tocados; correu pelas ruas e durante a chuva rala que caía sorriu sozinho, chutou as poças d'água com a alegria da criança que sempre fez morada dentro dele, brincou com as luzes da cidade, virou copos, conquistou amores, se deixou levar pela noite, se jogou e não quis ter fim... as reticências dizem muito mais do que se pensa ou do que se pretende pensar. Quisera ele, o homem que não dormia e agora acordara pra vida, deixar de lado o pensamento que o atordoava, e amou as reticências... descomprometeu-se com os pontos finais, com o relógio, com o celular, com essa fútil responsabilidade que se criou nos dias de hoje, não se interessava mais por atrasos indevidos, por conversas jogadas fora, por suposições e muito menos para o passado.
Viu que era sim, o passado, a solução dos embróglios pessoais. Resolveu retornar a ele, sendo o mesmo e sendo diferente, sendo novo e sendo velho, sem restrições ou censuras, na base do que lhe fosse conveniente, viu o sorriso do seu rosto refletir no rosto de quem era feliz ao seu lado, viu o prazer que sabia dar sendo explícito na vontade de quem o recebia, viu a gratidão, viu a paixão outra vez, essa paixão que não faz mal, que só faz bem, a paixão que o fez deitar a cabeça no travesseiro de novo e conseguir dormir em paz...
A diferença entre o veneno e a cura está na dosagem...

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