sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Carne de minha perna

Tribo Xingu

Carne de minha perna!
Que grite a vontade, ó índio tolo. Pois Peri o ensinaria a ser homem, a ser guerreiro, espécie de abutre sem caráter, sem nome, sem escrúpulos. Se pudesse, aqui dissertaria todo meu rancor, minha tristeza, minha raiva de Macunaíma, por ser tão ridículo, por ser tão absurdo, por ser, ainda mais, tão mentiroso e safado... e que pena, o autor retratou no parco índio o retrato perfeito do brasileiro. Pois foi Realista demais...
Como ainda me perco no Romantismo de Alencar e sua tentativa perfeita em querer demonstrar aos poucos leitores da época o que seria uma identidade autêntica, quase forçando a barra pra que fôssemos um pouco melhores, como uma bíblia em que nos espelhássemos, como quisesse que cada um, ao ler as façanhas de Peri, mostrasse no dia a dia um pouco dele, que o amor escondido e devoto à safada da Ceci pudesse ser encarado como uma dedicação à esposa dentro de casa, como se a fidelidade ao seu senhor fosse um pouco do que faríamos em nossos respectivos empregos, como se o seu senhor fosse então, um reflexo para que patrões bem tratassem seus empregados, uma chance à vida, que a paixão não precisasse acabar como vemos nos filmes de hoje, que os mocinhos nem sempre vençam, mas que lutem até o fim, e com a morte de quem é certo, a eternidade do herói, que arrancássemos uma árvore pela raiz todos os dias pra provar amor a quem amamos...
Carne de minha perna, volte aqui!!
Como é idiota esse pseudo índio a estragar ainda mais a índole do que já se faz tão podre, a correr estranho pelas matas arrumando problemas, temeroso de tudo, fraco de todos, salafrário, imbecil e ainda termina sem cor... descolorido, traindo a própria natureza, desfazendo o intenso trabalho do autor, maldizendo os bens nacionais, ridicularizando o que o grande índio conseguira com tanto êxito...
E Ubirajaras, Iracemas, Peris, todos intensos em seus amores, todos corretos na forma do índio que há de elevar ao mais alto patamar o que se faz pessoa brasileira, essa sujeira corrupta que somos, essas almas deslavadas e sem vergonha que nos tornamos com o passar do tempo...
Quem dera, outra vez a pureza dos fios lisos de cabelo, o cobre do corpo, e por falar em corpo me perco nela...
Como se não bastasse, fui eu, capitão de terras, desbravador camaraense, não me vejo em nobres títulos, mas ainda sinto o poder nas mãos, que o rebenque de prata não me pertença, tudo bem, vou na bengala que me apóia e me dá status, corroendo e misturando Emilianos Guedes e Justinianos Duartes da Rosa, doutor e capitão sou eu, ainda assim louco pelas donzelas do meu tempo... Iracema, virgem dos lábios de mel... Tereza, Favo-de-Mel, há muito descabaçada, que fique em casa, nos arredores de Estância a aguardar seu amásio, este que vos fala vai tomar os caminhos do Ceará, botar oca pra índia pura, o peixe mais gostoso em sua mesa, todas as frutas que desejar, ornamentos mil de todas as cores, mandados vir da África, coisa fina, e fará inveja a outras de sua tribo, há de desfilar com capitão doutor, mãos dadas, sem pudor algum, envergonhando as tradições locais...
Que moralista sou eu... sou mais um Macunaíma perdido nesse mar de gente, sou mais um que adere ao sistema podre, se coloca acima de expectativas e não as corresponde, sou mais um descolorido a misturar literaturas, admirar virgindades alheias, tomando mulheres na base da violência, portugueses que entram em nossa terra para disseminar seus genes e se vêem tomando cornos na cabeça, sou Macunaíma também, indiozinho sem vergonha que só pensa em si mesmo...
Estamos todos perdidos, Peri...

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