domingo, 2 de janeiro de 2011

Tatoo

E sempre lhe perguntam, cansa de responder, andará então com esse pedaço de papel no bolso, diversas cópias a fim de distribuir para todos que lhe indagarem outra vez...
“Na verdade são dois desenhos, e não um só. O segundo só surgiu três anos depois do primeiro, e o único motivo para isso é que eu havia esquecido o quanto dói deixar alguém rasgar a sua pele em forma de cores e ainda ter que pagar por isso. O significado é o que menos importa e nem sequer deveria ser abordado porque cada pessoa pode entender de uma forma; é como um livro, ou um quadro, as interpretações são variadas. Se uma mulher faz uma tatuagem de uma flor no pescoço, ou de uma borboleta, eu acharia muita coincidência todas as mulheres que tem uma flor ou uma borboleta no pescoço enxergarem os mesmos motivos para esses desenhos. Mais uma razão pra afirmar que as mulheres têm pouca criatividade. Mas azar o delas, o desenho é delas, a pele também, não indago pelo significado, mas para aqueles diferentes de mim, sedentos pelo saber, fofoqueiros por natureza, lhes digo, enfim.
As duas tatuagens têm uma amplitude que há de se identificar com a minha pessoa, e justamente por isso eu as escolhi, e se em algum momento essa máxima não for verdadeira, muito triste eu ficarei, pois não poderia arrancar fora meu braço só porque o significado de um desenho eterno não condiz mais com a minha forma de pensar, então não esperem mudanças nas minhas atitudes, serei assim para sempre. Só por culpa exclusiva da força desses desenhos.
Duas imagens diferentes com intenções bem próximas.
A realidade da minha primeira tatuagem diz respeito ao teatro. Só que eu nunca havia me interessado por teatro, nem por atuar, nem mesmo por entretenimento, a não ser uma ou outra coisa nas escolas, que me renderam, fatalmente, prêmios internacionais e coisas do tipo. A graça do fato é que alguns meses depois de feita a tatuagem fui convidado para um teste em uma peça de um diretor amigo meu (daí a causa da minha provável aprovação para o papel) e todos lá no tablado ficaram impressionados com minhas duas caras, uma feliz, outra triste, e dizendo que eu tinha sim muito amor ao teatro por ter coragem de tatuar a própria pele com o símbolo sagrado deles e tudo mais. Tolos...
Uma outra face do desenho diz respeito ao carnaval. Coisa que me interessa bem mais que tudo... Pierrot e Colombina, assim por dizer, e suas danças nos salões e a lembrança dos primeiros tempos do carnaval e aquela boba ingenuidade das marchinhas. Mais uma contradição pelas máscaras invertidas de sentimento, o que traz à tona a verdade do carnaval atual, festa da carne, liberação da libido, propagação das doenças venéreas, a intenção da tatuagem.
E evoca também a tradicional fala popular de pessoas ditas “duas caras”, como a novela que estava no ar um dia desses. Julguem como queiram, o presidente que vos fala sempre há de ser sincero, e se duas caras eu tiver, serão duas belíssimas caras.
Adentrando no mundo do meu incrível curinga das cartas trocadas, assassino pelos seus olhos loucos, o punhal ensangüentado na mão, o sorriso mortal que morre em seus lábios finos, maltratados pelo tempo, o sorriso sempre espelhado nos outros, jamais em si próprio, o cansaço desse intento infinito.
Se não conhecem a história do meu curinga, lhes digo então que nos primórdios de sua vida, talvez lá nos idos da Idade Média, com os senhores feudais e toda aquela safadeza para com os camponeses, tristes e maltrapilhos, futuros burgueses capitalistas malditos, ele era nada mais nada menos que um bobo da corte. Sim. Um bobo da corte, palhaço com seu chapéu característico, com o intento único de fazer sorrir aqueles que lhe pagavam, aqueles que detinham o poder, a nobreza européia e todas as suas facetas do mal.
Dia após dia, as mesmas graças inventadas, as piadas infinitas que faziam rir que não precisa de motivo para isso, todas as bobeiras e falsas felicidades que eram passadas pelo meu bobo da corte diretamente aos reis, às rainhas, às princesas virgens, aos príncipes puritanos. Mas cansou-se de tudo isso. Da miséria, da alegria alheia em detrimento da sua própria, da humilhação de ser despejado quando a piada não agradava, acordou numa certa manhã de inverno, vestiu sua melhor fantasia, deixou cair pelos olhos o chapéu colorido, apanhou um punhal que sempre está jogado nos castelos de antigamente e matou toda a nobreza européia, num só dia, numa só empresa, a revolução deixou cicatrizes, as cidades começaram a crescer copiosamente, estradas ligavam umas as outras para que o bobo da corte pudesse chegar de reino em reino para assassinar seus reis, os antigos camponeses viram a necessidade de vender suas colheitas para outras pessoas, uma vez que seus patrões estavam apodrecendo, encharcados de sangue que lhes corria pelo corpo; chamaram-se então burgueses, outra vez que as cidades em que vendiam suas mercadorias foram conhecidas como burgos.
E o bobo da corte ficou tão famoso por acabar com o sistema feudal da Europa, que foi incorporado a um jogo inventado alguns anos depois: o baralho. Chamou-se então curinga, aquele que pode substituir qualquer outra carta, qualquer outra pessoa, qualquer função, aliás, substitui e faz muito melhor. Manteve ainda seu punhal na mão para que não se esquecessem de seus atos, e vive substituindo o trabalho alheio pelo mundo afora, além de ter feito um papel de grande destaque no filme Batman, sucesso de bilheteria mundial.

E é esse o significado da tatuagem.
E não me amolem com mais perguntas.”

P.V. 15/12/10 23:18

Nenhum comentário: