quarta-feira, 19 de maio de 2010

O dia C VIII

Quando dei por mim, estava já consciente, não precisava de outros cuidados; deitado naquele leito lembrei de todos os meus afazeres, e o trabalho que deveria ser elaborado por mim ainda naquele dia, mas olhei o relógio e vi que o plantão chegava próximo do fim. Todo guerreiro, por guerrear, há de ter seu descanso. Acomodei-me no luxo ofertado. Explicaram-me depois que o médico não chegara a conclusão alguma, talvez um mal súbito, ou qualquer outra coisa sem explicação, dessas que ninguém, de fato, perderia tempo tentando decifrar.
Caí num descanso, queria colocar em ordem todas as minhas idéias, tudo que havia se desenrolado, coisas realmente estranhas, pessoas de fora talvez não acreditassem, diriam que são mentirosas minhas palavras, sempre tão sinceras aos ouvidos alheios. Fechei os olhos, viajei para outros lugares, conjeturei sobre possibilidades, deixei de lado meus medos; abria-se, agora, um novo horizonte pronto pra que eu, louco e deitado, pudesse adentrar com essa minha vida intensa, com esse novo aprendizado, com tudo de bom que tinha guardado e não sabia onde estava, mas os olhos abriram-se de supetão, algo cutucava meu sovaco...!
Quando enxerguei melhor, vi uma moça de branco, belíssima, dessas que parecem vestir-se das mais alvas nuvens do céu. Loira dos olhos azuis... seria muita presunção se eu dissesse aqui que ela guardava os raios do Sol nos cabelos, e o escondia o céu nos olhos. Mas ora, vejam só, já o disse. Que seja então...
Fazia seu trabalho, coisas normais de uma profissional da saúde, aferições de sinais vitais, um termômetro embaixo do braço, um serviço realmente desnecessário para mim, uma vez que já me sentia melhor, me via bem, estava no auge de minha saúde, gozando de energia depois de todas aquelas histórias prontas para serem gritadas ao mundo.
Minha moral elevada não se deixa cair, não se contenta com o muito; vi na bela moça mais uma oportunidade de felicidade, mais uma batalha da missão que se designara ainda na madrugada, e seria um belo desfecho, se assim quisessem os deuses do destino, homens do futuro e todos esses bobos com caneta na mão que vão escrevendo as coisas que devemos ou não fazer.
Dessa vez, decidi trabalhar de forma diferente, não tinha mais vontade de gastar minhas palavras, não queria mais gastar a saliva pouca que restara em minha boca, não sujaria minhas letras com o batom velho que ainda levava, fui direto, fui em linha reta, fui como sempre fora em toda a eternidade de minha vida fétida,voltei aos esgotos mais imundos por onde já passei, se me vissem naquela situação, antigos amigos do tempo mais simples, chamariam-me de novo de Rato, podre e estragado, desses que comem o que resta sem dividir, desses que aparecem e somem sem que ninguém perceba, eu, em minha plena forma. Fui direto à moça, a qual nem me importei por saber o nome. Disse-lhe mirando o fundo dos olhos:
__ Se eu te dissesse que tem um corpo lindo, você o apertaria contra o meu...?
E sorriu... boba. Um sorriso, fatalmente, morrerá. E morreu.
Agarrei-lhe, beijei-lhe, descobri seu corpo devagar com minhas mãos, mesmo deitado no leito, mesmo com o termômetro ainda sentindo minha temperatura subir...
Arrumou os cabelos, ajeitou a roupa, tirou o termômetro, havia de ir embora, realizar o resto de suas atividades, passar o plantão, escreveu em meu prontuário, “febre altíssima”, coisa engraçada...

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